o herói
desconhecido

Autor: González Pecotche

O verdadeiro herói é o herói ignorado que luta sabendo por que luta, que se levanta tantas vezes quantas é derrubado. Existem em sua vida circunstâncias que costumam ser cruéis, quando – coalhado de dificuldades o solo que há de pisar – elas o colocam na situação de ter de provar sua fortaleza.

OS HERÓIS DA HISTÓRIA

É comum ouvir falar do herói cujas façanhas, nos campos de batalha, valeram a admiração geral e a distinção de tão elevada categoria moral. Também se faz menção a outros, em cujos ambientes as oportunidades de alcançar essa alta hierarquia é consideravelmente menor, sendo talvez os menos recordados aqueles que figuram no campo da ciência.

Parece que a palavra herói está associada a tudo o que se relacione com lutas, tragédias, atos de abnegação, etc. E, com efeito, ela supõe a exaltação de um nome à altura dos privilegiados, em virtude de atos de arrojo ou de feitos nos quais, segundo a acepção corrente, se mostra um total desapreço pela vida.

Sem menosprezar, naturalmente, o mérito que tais atos ou feitos possam ter, será necessário dizermos, não obstante, que mais de um desses momentos, que se gravam na história como exemplos de heroísmo, costumam ser promovidos por causas alheias à vontade dos protagonistas. A circunstância, uma premência suprema, a necessidade de em brevíssimos instantes encarar situações angustiosas, são em muitos casos acicates máximos que impulsionam o homem a ações heroicas.

Esta simples discriminação que nos permitimos fazer serve para assinalar que, de acordo com aquilo que o vulgo entende, o herói surge bruscamente do ato ou do feito que o consagra como tal, aparecendo revestido de virtudes ou qualidades até então ignoradas. Quer isso dizer que semelhantes atitudes não são produto da inteligência ou de um cultivo particular de determinada faculdade interna.

 O VERDADEIRO HERÓI

Deixemos agora esses heróis da história, cobertos de uma glória que ninguém lhes ousará disputar, e vamos em busca do herói desconhecido, do que honra o gênero humano por sua apurada vocação humanitária, por seu voluntário sacrifício como oferenda permanente e generosa e como sublime tributo ao bem perseguido. Quantos deles são ignorados, sem que sequer seus nomes permaneçam na recordação daqueles a quem beneficiaram!

Vamos também em busca desse outro herói desconhecido e verdadeiro que está dentro de cada ser humano, que luta contra tudo o que se opõe às determinações de sua vontade e sobrepuja  todas as contingências da vida; que luta contra as enfermidades que minam seu organismo e põem em perigo sua vida; contra as agressões a que está exposto diariamente, agressões morais cujos rudes golpes às vezes tanto custa reparar; que defende a duras penas suas economias da usurpação e da pilhagem, e se expõe a mil riscos para não cair vencido pelo desespero e pelo infortúnio.

E, como se tudo isso fosse pouco, nós o vemos empenhado na mais árdua e tenaz das lutas, na batalha maior e mais memorável de toda a sua história: a que sustenta contra sua natureza inferior, que ele deve vencer e humanizar; contra suas tendências e pensamentos, quando escravizam seu espírito e lhe pervertem a vida.

Quão digno do melhor conceito é aquele que rompe a estreita visão de sua miopia mental e decide encaminhar sua existência em direção a outros e bem altos destinos, os quais, por certo, não são os comuns ao grosso da massa humana.

ESTUPENDA E MAGNA BATALHA

Numa superação constante, limpando as escórias da mente para permitir o livre funcionamento de todas os recursos da inteligência, esse ser trava, como dissemos, a batalha mais estupenda e magna de sua história. Este é o verdadeiro herói, o herói ignorado que luta sabendo por que luta, que se levanta tantas vezes quantas é derrubado. Existem em sua vida circunstâncias que costumam ser cruéis, quando – coalhado de dificuldades o solo que há de pisar – elas o colocam na situação de ter de provar sua fortaleza. É nesses momentos intensos que deve apelar para todas as forças internas, ou buscar dentro de si mesmo, no refúgio íntimo, os recursos necessários para não esmorecer e ter possibilidade de vencer na peleja.

Pode-se, acaso, negar essa condição, que implica uma alta distinção no conceito corrente, a quem enfrenta e domina sua natureza inferior; a quem alcança por seu esforço, por sua constância e pelo cultivo de altas qualidades uma posição exemplar entre seus semelhantes? Por isso, sustentamos que este é o herói que deve conquistar, no juízo de todos, o lugar de honra que lhe corresponde, ainda que custe, talvez, reconhecê-lo, pois ninguém presencia as alternativas pelas quais passa nessa luta que não se vê, porque é interna, mas que tem tanto valor quanto a daqueles cujos atos heroicos o põem de manifesto.

Quando este herói chega a assemelhar-se ao grande, ao sublime exemplo daquele que, podendo desfrutar tudo, por permiti-lo sua sabedoria e sua evolução, prefere colocar-se ao lado dos que recebem sua ajuda, trabalhando em silêncio, suportando todas as vicissitudes, fazendo do sacrifício um culto e irradiando, com sua paciência cheia de luz, a paz por todas as partes, pode-se dizer que ele já conquistou os lauréis da imortalidade. Porém, neste caso, esta expressão não deverá ser entendida como uma louvação ao próximo, mas sim como uma oferenda pura, a mais valiosa de todas, ao Supremo Inspirador da alma humana.

Quando repassamos os fatos históricos que marcaram o princípio e o fim de épocas gloriosas ou de decadência, e o entendimento se põe a meditar sobre o que cada um deles significou e significa para a reflexão dos homens, experimentamos, sem que possamos contê-lo, um sacudimento espiritual, uma alegria que vem junto a uma aflição e junto, sobretudo, a um anseio ardente de ser útil à humanidade.

Esse anseio é, precisamente, o que impulsiona os seres humanos para melhorar suas condições e qualidades, num amplo e generoso gesto de superação espiritual. E é nesse afã que os homens encontram seus melhores estímulos e as mais nobres inspirações de bem.

CAUSA DOS CONFLITOS PRODUZIDOS NO MUNDO

Mas a humanidade, que se agrupa em raças ou povos de diferentes idiomas, hábitos, etc., pertencentes, sem exceção, ao gênero humano, está formada por grandes massas de diversos tipos psicológicos. Estão essas massas distanciadas entre si mental e espiritualmente, de acordo com o grau de adiantamento que umas e outras acusam, e de acordo com os costumes, crenças ou inclinações de seus pensamentos.

No seu todo, isso estabelece dentro desse conjunto diferenças que às vezes culminam em antagonismos extremos e que são causa, desde tempos imemoriais, dos tantos conflitos produzidos no mundo. Esses conflitos, com o passar dos anos e dos séculos, foram aumentando o volume das contendas e dos desastres, restando como saldo fragmentos de humanidade. Queira-se ou não, isso veio debilitando o homem e, até se poderia dizer, afastou de suas possibilidades a grande figura arquetípica de seus elevados destinos.

Isto tem muito a ver com o abandono a que, incompreensivelmente, a humanidade parece ter-se entregado no curso dos séculos, abandono de suas condições e qualidades e, sobretudo, da disposição para atender à única realidade que dá expressão à sua existência: a consciência.

USO DA RAZÃO COMO IMPERATIVO DO MOMENTO ATUAL

Ultrapassado o limite de todos os desejos e exigências que costumam determinar o conjunto das aspirações humanas, e ainda de suas razoáveis ambições, o ser humano, numa quase permanente agitação, foi-se submergindo pouco a pouco na inconsciência. Sem maiores transtornos para sua razão, foi-se submergindo num obscurecimento que, sutilmente, o foi embriagando, até convertê-lo num instrumento que justifica, aos olhos das outras pessoas, os erros ou desvios em que ele incorre.

Devolver, portanto, à humanidade o pleno gozo de suas faculdades e o uso consciente de sua razão deve ser e é o maior imperativo do momento atual.

Não se há de esquecer que foram sempre uns poucos, em relação ao número de seres humanos que povoam a Terra, os que tiveram a responsabilidade de guiar os homens pelo caminho que devia conduzi-los ao cumprimento de seus fins mais elevados. De modo que o peso dessa grande responsabilidade recaiu, em todas as épocas, sobre esses poucos que tiveram de pensar pelos demais. Pois bem; não teria chegado o tempo de essa responsabilidade ser compartilhada por um número maior de seres, e de aumentar a cada dia o número dos que pensam e dos que colaboram em tão magno trabalho?

A resposta surge afirmativa, porque a lição que a guerra atual haverá de representar para a humanidade é demasiado grande para que não seja compreendida em seu profundo conteúdo. Chegou, pois, o momento de toda a humanidade ser mais consciente de sua própria existência e de tudo que lhe pertence em razão de sua primordialíssima função civilizadora. Cada integrante da espécie humana deverá alcançar, no futuro mais próximo, essa consciência, que muitas vezes o chamará à reflexão; consciência de seus deveres para consigo mesmo, no que diz respeito à inquestionável necessidade de uma superação de seus valores individuais; consciência de seus deveres para com a família e para com a sociedade.

O DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA

É sabido que o despertar da consciência não se produz em todos do mesmo modo. Nas mentes cultivadas, ou habituadas a certas disciplinas, esse despertar surge como uma eclosão de luz que ilumina uma nova e mais ampla fase da vida, a de maior transcendência. Já nas mentes que não têm cultivo, promove-se em tímidas manifestações de compreensão, que somente alcançam sua culminação quando chegam às condições de aptidão exigidas por tão importante acontecimento.

A era que se inicia com o término da guerra atual será (1*), pois, a era da responsabilidade; a dos deveres e dos direitos; vale dizer, terá chegado o momento de começar definitivamente a era da evolução consciente.

Já se viu muito claramente como o pensamento dos grandes estadistas, bem como das opiniões reitoras que tornam público o critério que se forma entre as massas, veio se modificando nos últimos tempos, sobretudo no decorrer deste último ano. Todos concordam que o mundo deve ser conduzido por caminhos mais retos, mais justos e mais amplos, nos quais a dignidade humana encontre suas expressões mais puras e elevadas.

A liberdade, que é fundamento essencial da vida, forma o vértice do triângulo cuja base repousa no dever e no direito. Perante este ternário que plasma a síntese da responsabilidade humana, será preciso erguer a consciência dos homens e fazer com que ela se manifeste em todo o seu esplendor e na sua potência máxima. O futuro da humanidade depende dessa realização. Nela encontrará a chave que assegurará a paz sobre a Terra.

* N.T.: Tendo publicado este artigo em março de 1945, o autor se refere à Segunda Guerra Mundial.

(Fonte: livro Coletânea da Revista Logosofia – T. 3 – pag. 197)

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